Nascida na Ucrânia no dia 10 de dezembro de 1920 e
naturalizada no Brasil ela declarava, sua brasilidade como pernambucana.
Clarice é considerada uma das escritoras mais importantes do século XX. Suas
obras têm como personagens pessoas comuns e tramas psicológicos e cotidianos.
Judia, sua família perdeu toda renda em decorrer da
segunda guerra mundial, tendo que imigrar para o Brasil por medo da perseguição
nazista. Chegou ao território brasileiro por volta dos dois meses de idade na
cidade de Maceió, e logo depois mudou-se com seus pais para o Recife onde
perdeu sua mão. Algum tempo depois foi para o Rio de Janeiro onde sua família
de estabilizou e mais a frente perdeu seu pai.
Estudou direito pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, embora tivesse mais interesse no meio literário, este que ela iniciou
como tradutora e logo consagrou-se como renomada escritora. Clarice tornou-se a
figura mais influente do modernismo, sendo comparada com principais autores do modernismo
do século XX .
Seu primeiro texto publicado foi em 1940, este era um
conto com temática feminina chamado de Eu
e Jimmy. Apesar das dificuldades encontradas por Clarice para trabalhar em
um jornal, ela conseguiu entrar para a Agencia Nacional como tradutora, mas
como não existia este cargo lá ela foi designada para o papel de editora e
repórter sendo a única mulher a trabalhar lá naquela época.
Em 12 de janeiro de 1943, obteve a naturalização, e, em
23 de janeiro, em cerimônia civil, casou-se com Maury Gurgel Valente. Ele que
foi seu colega na faculdade de direito, onde ambos mesmo formados não
comparecem a cerimonia de colação de grau.
Dona de uma vasta obra literária com: Perto do coração
selvagem (1943); Laços de família; A paixão segundo G.H. (1964); A hora da
estrela (1977) e Um sopro de vida (1978),
seus últimos livros publicados.
Muito conhecida por possuir pseudônimos como Tereza
Quadros e Helen Palmer, também foi a ghost writer da atriz Ilka Soares na
coluna "Só para mulheres", do Diário da Noite.
Clarice morreu aos 56 anos por um câncer no ovário. Até a manhã de seu falecimento, mesmo
sob sedativos, Clarice ainda ditava frases para sua melhor amiga, Olga Borelli,
que esteve sempre ao lado da amiga, desde a juventude. Clarice deixou dois
filhos e uma vasta obra compostas por romances, novelas, contos e crônicas.
As Caridades odiosas
Foi uma tarde de
sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela rua depressa, emaranhada
nos meus pensamentos, como às vezes acontece. Foi quando meu vestido me reteve:
alguma coisa enganchara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão
pequena e escura. Pertencia a uma menino a que a sujeira e o sangue interno
davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da grande
confeitaria. Seus olhos, mais do que suas palavras meio engolidas,
informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi vagamente um
pedido, antes de compreender o seu sentido concreto. Um pouco aturdida eu o
olhava, ainda em dúvida se fora a mão da criança que me ceifara os pensamentos.
- Um doce, moça, compre um doce
para mim.
Acordei finalmente. O que estivera
eu pensando antes de encontrar o menino? O fato é que o pedido deste pareceu
cumular uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer pergunta,
assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.
Sem olhar para os lados, por pudor
talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum
conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só
Deus sabe explicar: um doce para o menino.
De que tinha eu medo? Eu não olhava
a criança, queria que a cena, humilhante para mim terminasse logo.
Perguntei-lhe: que doce você...
Antes de terminar, o menino disse
apontando depressa com o dedo: aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um
instante perplexa, eu me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que
o servisse.
- Que outro doce você quer? Perguntei ao menino escuro. Este, que mexendo as mãos e a boca
ainda esperava com ansiedade pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um
instante e disse com delicadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa
de outro não. Ele poupava a minha bondade.
- Precisa sim, cortei eu ofegante,
empurrando-o para frente. O menino hesitou e disse: aquele amarelo de ovo.
Recebeu um doce em cada mão, levantando as duas acima da cabeça, com medo
talvez de apertá-los. Mesmo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi
sem olhar para mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeira olhava
tudo:
-Afinal uma alma caridosa apareceu.
Esse menino estava nesta porta há mais de uma hora, puxando todas as pessoas
que passavam, mas ninguém quis dar.
Fui embora, com o rosto corada de
vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos
anteriores. Eu estava cheia de um sentimento de amor, gratidão, revolta e
vergonha. Mas, como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu
tivera a oportunidade de... E para isso fora necessário um menino magro e escuro...
E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.
E as pessoas que tomavam sorvete?
Agora, o que eu queria saber com autocrueldade era o seguinte: temera que os
outros me vissem ou que os outros não me vissem? O fato é que, quando
atravessei a rua, o que teria sido piedade já se estrangulara sob outro
sentimento. E, agora sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os
anteriores, só que inúteis.
Clarice Lispector (A descoberta do mundo)
Análise da obra
As caridades odiosas vêm com objetivo de
mostrar ao publico o quão humilhante para alguns é o ato de ser caridoso. Neste
texto Clarice é a personagem principal que anda pelas ruas mergulhada em seus
pensamentos, quando um menino aparentemente negro e sujo pede a ela um doce,
dai por diante ela se enche por um sentimento de raiva, vergonha e pudor, ao
contrario do que muitos pensam pelos sentimentos causados pelo ato caridoso,
para ela naquele momento ser caridosa era semelhante a humilhação.
Tratando o garoto com dureza e a aspereza,
ela logo decide dar a ele o doce tão esperado e acabar logo com essa sensação
de mal estar. Ao entrar na confeitaria ela evita olhar para as mesas com medo
de alguém que a conheça esteja a observando. Ela se irrita até mesmo com a
delicadeza do menino em não aceitar outro doce.
Ao fim depois de dar a ele os doces o menino
sai correndo e a caixeira lhe diz que fazia mais de uma hora que o garoto
estava pedindo e a elogiou por ter uma alma caridosa, Clarice então se pega
pensando o porquê de tê-lo tratado tão mal, seu coração se enche de carinho,
amor e vergonha dos seus outros sentimentos, então ela se pergunta, se a
vergonha de antes era por ser vista com o menino ou não ser vista e quão inútil
era seus pensamentos entorno dessa situação.
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